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sábado, 12 de julho de 2008

Literatura - Um poeta na contramão

Por Cézar Katsumi

Reynaldo Jiménez desafia o leitor pós-moderno. Seus poemas, com sintaxe e pontuação irregulares, requerem uma leitura cuidadosa – e releituras, na maior parte das vezes. Assusta logo de cara aqueles que estão acostumados aos coloquialismos e clichês que pululam nas produções literárias pós-modernas. No entanto, somente alguém inserido nessa cultura alimentada e renovada a todo instante por informações advindas dos quatro cantos do mundo é capaz de decifrar o universo de signos e referências presente nos versos cuidadosamente lapidados por Jiménez.

Seus poemas deixam transparecer um vasto repertório cultural do poeta materializado nas citações que transitam de clássicos como Cândido, de Voltaire, a filmes como o japonês Balada de Narayama, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1983. Mas algumas referências passariam batidas pelo leitor brasileiro. É o que ocorre na obra Las Miniaturas (1987) em que Jiménez cita passagens de cantos pré-colombianos e de autores latino-americanos importantes, mas pouco conhecidos pelo público brasileiro, como o peruano Jorge Eduardo Eielson e o colombiano Germán Arciniegas.

Eléctrico y despojo, lançado pela editora portenha Trocadero em 1984, reúne 28 poemas escritos por Jiménez entre 1980 e 1983. Essa é certamente uma das obras em que Jiménez concentra-se mais no universo sensorial. Os poemas se erigem a partir de um rico inventário de experiências sensitivas – marcado principalmente pela visão, tato e audição – e põem à tona um estado fluido de inconsciência, de extrema fertilidade criativa, em que se misturam imagens idílicas tal como num quadro surrealista.


no hay regreso las ramas
cimbran el silencio en unos
ojos que se esperan o convierten
en el brillo
en la llave de las águas

aunque es tarde pero suenan
en la bolsa de la noche las agujas
la sangre escapa
la música una palma cerrada

pero aprieta sus mandíbulas el cielo
las cabezas cortadas de los árboles

aunque nada sople tiembla el sueño
de las aguas como un cuerpo
que ha empezado a
respirar


Assim como as imagens que apresenta, é como se os versos e as palavras ganhassem vontade própria e buscassem explorar, à sua maneira, o espaço físico no papel. Na primeira metade do livro, é mais que evidente a influência de Mallarmé e seu lance de dados na forma como os versos e as palavras se distribuem ao longo dos poemas. A sintaxe é praticamente solta e, em alguns trechos, faz-se a presença de “metáforas visuais” ao melhor estilo concretista de Haroldo de Campos.


por la línea

pesa el
sol
o
pasa
o
el eco
esconde

algo que
te suelta
algo
deseándote
o
perdido

se anuda
al
aliento y
entra el
día
o

se
va


Jiménez é considerado por muitos teóricos um expoente da poesia neobarroca na América Latina, ao lado do cubano José Kozer e de poetas de peso no Brasil como Haroldo de Campos e Paulo Leminski. A corrente literária, ao trazer a referência do movimento seiscentista, busca contrapor-se, sobretudo, ao racionalismo e logocentrismo da poesia contemporânea em prol de uma polifonia de vocábulos, desarticulando o discurso linear com o uso de elipses, pontuações inusitadas e sintaxe irregular. Jiménez, contudo, refuta uma classificação estanque à sua poesia. “Diria que recentemente estou começando a vislumbrar um desdobrar minimamente racional sobre o neobarroco; não sou um especialista em definições, nem teórico, de modo que me meter com isso, onde por outro lado estou efetivamente envolvido, não é algo fácil.”

Definições à parte, a poesia de Jiménez é uma pedra no sapato da pós-modernidade, ao colocar em crise o culto ao imediatismo e às banalidades que corroem a poesia contemporânea desde seus miolos. Apesar de pouco reconhecida pelo público, somente uma poesia como a de Jiménez parece ser capaz de andar na contramão desse processo contínuo de degradação: é densa como um diamante, mas, ao mesmo tempo, irregular e bela como uma autêntica pérola. Aos porcos.

sábado, 10 de maio de 2008

Literatura - Paulo Leminski: o marginal dos marginais

Por Cézar Katsumi

Este sim foi um verdadeiro marginal. Dos poetas da geração 68, como ele mesmo se intitulou em uma espécie de manifesto na revista Pólo Inventiva em 1978, ninguém mais do que Paulo Leminski encarnou o que havia de realmente original nessa geração marcada pelo inconformismo e rebeldia: a incoerência. Dono de uma personalidade singular, o poeta curitibano era capaz de reunir num mesmo ser a figura de hippie, ex-seminarista, poeta, publicitário, judoca e haicaísta zen. Embora soe um tanto quanto paradoxal, a sua incoerência era o que havia de mais sensato nesse contexto histórico pós-68.

Uma de suas contradições, se é que assim a podemos considerar, era o fato de ser marginal e, curiosamente, possuidor de uma erudição como poucos em sua época. Por trás do linguajar coloquial e dos versos livres, fazia-se presente na poesia de Leminski um rigoroso trabalho com a linguagem, fruto de um conhecimento aprofundado de autores consagrados como James Joyce e Ovídio, e da amizade de longa data com intelectuais de primeira grandeza como Décio Pignatari e Haroldo de Campos. É sabido também que o poeta tinha familiaridade com línguas. Ele mesmo se orgulhava de ser um “bandido que sabia latim”.

Leminski, ou a “besta dos pinheirais”, como também foi alcunhado, não via incoerência alguma em ser marginal e concretista ao mesmo tempo. Se de um lado, os marginais buscavam a liberdade contra todo tipo de repressão, do outro, o Concretismo, com o seu arcabouço teórico rígido e inflexível, representava a alguns deles o que havia de pior: um verdadeiro AI-5 da literatura. Nesse cenário, a figura de Leminski surgiu como uma válvula que despressurizava o rigor do Concretismo ao mesmo tempo que inflava a poesia marginal com uma boa dose de lirismo e erudição. Nesse meio tempo, conseguiu ainda espaço para ser tropicalista na gélida e sóbria Curitiba.

É, contudo, no campo social onde Leminski guardava suas maiores contradições. Escreveu a biografia do revolucionário russo Trotski, envolveu-se com organizações de esquerda como a Libelu, Liberdade e Luta, mas ainda assim não se permitia fazer poesia social. A respeito dos poemas de colegas que versavam sobre “bóias-frias ou metalúrgicos do ABC”, costumava dizer que “a realidade objetiva é a prostituta mais barata no mercado de idéias”. No começo da década de 80, numa reunião de escritores alemães no Rio de Janeiro, chegou a acusar o poeta maranhense Ferreira Gullar de “oportunista” e “carreirista”. Nesse caso, Leminski concordava com Fidel Castro. Preferia “um bom poema romântico a um mau poema político”: o primeiro, pelo menos, não prestaria um desserviço à revolução. Em seus textos criativos, podemos encontrar muitas vezes uma metalinguagem daquilo que considerava a verdadeira poesia marginal.

[Marginal é quem escreve à margem,]
Marginal é quem escreve à margem
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.

Como o poeta Ademir Assunção afirma, Leminski fazia questão de “alterar o texto para bagunçar o contexto”. Um exemplo clássico disso é a paródia que fez do discurso nacionalista de Médici: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Leminski escreve: “ameixas / ame-as / ou deixe-as”. Ele consegue subverter o discurso militar ufanista somente alterando algumas palavras e, de quebra, se diverte com isso. Em tempos de chumbo, costumava dizer que “rir é o melhor remédio, achar graça, a única saída”.

Outra contradição saltaria aos olhos do público quando o poeta decidiu conciliar a literatura com a profissão de publicitário. Em 1975, no lançamento de sua obra prima Catatau, Leminski valeu-se de um recurso de marketing: pousou nu, em posição de flor de lótus, para o cartaz promocional da obra. Décio Pignatari, também publicitário, qualificou Catatau como o primeiro livro que surgiu dentro de uma perspectiva inovadora de promoção e marketing. O escritor Jaques Brand, contudo, foi bastante crítico ao destacar o ego de Leminski nessa “jogada publicitária”. O poeta curitibano então responde: “o que irrita Brand é que usei técnicas da propaganda para lançar um livro de literatura. Como se a literatura – numa sociedade de mercado e de consumo – fosse algo de santo ou pátrio”.

Leminski viveu intensamente as contradições de sua época. Faleceu aos 44 anos de cirrose hepática como Fernando Pessoa, embora desejasse ter sido como Pound e Maiakovski, dois grandes poetas que não bebiam. Apesar de ser enquadrado por muitos nos apêndices ora do Concretismo, ora da poesia marginal e ora do Tropicalismo, conseguiu realizar uma façanha ainda maior, como poucos na história da literatura: ser maior que um simples emblema. Ser ele mesmo.

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